CAUSAS DO SOFRIMENTO - II
A ilusão partilhada que nos faz humanos

Laís Bertoche

Este é o segundo de uma pequena série de textos que buscam explicar as diversas causas do sofrimento e os meios que podem ser utilizados para o restabelecimento da harmonia.

A experiência num corpo físico


No texto anterior recordamos que o fato de termos um corpo físico nos impõe uma série de tarefas e cuidados como alimentá-lo, protegê-lo etc. para mantê-lo vivo, e apesar disso, o corpo envelhece, adoece e certamente morrerá.

Todos os aprendizados, sucessos, dificul-dades e mazelas que experimentamos no decorrer da vida ficam registrados como marcas na memória pessoal e coletiva, e determinam o modo como percebemos, pensamos e agimos no mundo. Essas mar-cas se expressam como uma canção, a canção que nos confere uma identidade pessoal.

Memórias que fazem adoecer

Uma pessoa em harmonia consigo mesma vai observar essa mesma harmonia no mundo e agirá de modo sereno e confiante. Sua canção será melodiosa e em sintonia com seu momento evolutivo.

Ao contrário, quando a mente está confusa e caótica, a pessoa identifica caos em toda parte; seus pensamentos julgam o mundo de forma severa e conturbada, levando-a a agir de forma defensiva e agressiva, ampliando ainda mais a confusão e a anarquia. Essa outra não é a sua canção, mas vem de algum lugar do passado.

E de onde vem a percepção equivocada que produz maus pensamentos e ações confusas? São canções de outros persona-gens, memórias inconscientes herdadas de vidas passadas, da família de origem, das crenças e valores do povo a que pertence.

Essas canções dissonantes e conflitantes se expressam nas queixas do paciente e são a linguagem da doença. Através da fala da pessoa podemos perceber a origem do sofrimento – e, em estados ampliados de consciência como na meditação, nos sonhos lúcidos e em terapias fenomenológicas (como a Transgeracional), identificar a cena e o momento em que aquela canção (ou aquela história) foi cantada pela primeira vez.

Onde nascem outras canções Há canções que pertencem exclusivamente ao reino humano – aquelas que falam da nossa capacidade de interagir com o outro, de descobrir quem realmente somos e de caminhar para uma realização espiritual.

Mas além do sofrimento próprio do humano, o longo processo de desenvolvimento pode nos deixar aprisionados a histórias que pertencem a reinos mais primitivos, como os instintos dos animais, a sensibilidade própria do reino vegetal ou a estrutura do reino mineral – entoando assim outras canções.

As canções da evolução


Essas outras canções são frutos de vivências traumáticas gravadas num determinado momento evolutivo. Se o golpe mortal ocorreu numa idade mais tenra, é muito provável que o personagem permaneça a nível da emoção, e não consiga elaborar mentalmente o ocorrido: sinto o frio do ambiente, os ruídos me perturbam, as cores são muito intensas, etc.


Fatos que ocorrem de forma inesperada e sem possibilidade de qualquer controle pessoal, comumente provocado por impac-tos no ambiente ou por fenômenos da natureza (terremotos, desabamentos, etc.), frequentemente produzem sintomas ligados à estrutura: me sinto esmagada, pressionada, desintegrada, etc.

Se o evento perturbador é mantido cons-tantemente na mente, a personagem acaba por viver num estado ilusório e a construir mecanismos instintivos de defesa que a protejam de novo sofrimento: me sinto perseguida, observada, aprisionada, etc.

Traumas e memórias

Assim, dependendo de como elaboramos uma memória traumática, desenvolveremos mecanismos de defesa semelhantes aos instintos próprios da experiência no reino animal; permanecemos nas emoções nascidas da vivência no mundo das sensações (reino vegetal); ou aprisionados em sensações relacionadas à estrutura física, própria do reino mineral.

O médico homeopata Rajan Sankaran afir-ma que uma situação só se torna um problema quando é associada ao passado. Somente assim, um incidente já fixado na memória como algo ameaçador pode confirmar a falsa percepção da realidade, pro-vocando respostas fixas.

O mais grave é que essas respostas fixas tendem a gerar um campo de memórias extremamente potente, sendo facilmente transmitido de geração a geração, de uma personagem a outra, vida após vida, numa sequência infindável.

A força das ilusões

Cada pessoa sofre, sem se dar conta, inúmeras influências ilusórias que se refletem no modo de perceber o mundo, nas ativi-dades, na relação com o outro e consigo mesmo. A ilusão também está presente nos projetos, pesadelos, sonhos, fantasias e estados emocionais como medo, tristeza, ódio, insegurança, etc.

Embora cada indivíduo seja afetado de um modo particular e único, as ilusões estão arquivadas no inconsciente coletivo, isto é: não são exclusivas do indivíduo, mas per-tencem a todos os seres da mesma espécie e permitem o mútuo reconhecimento.

Partilhadas com toda a humanidade, as ilusões são capturadas nos mitos, nos fil-mes, nos contos de fadas, nos livros, nos arquétipos: heróis, vítimas, algozes, escra-vos, mendigos, meretrizes, reis e tantos outros, além de possibilitar a conexão com a história do outro quando representamos outros personagens na abordagem das Constelações Sistêmicas.

Liberando memórias


O grande problema é que o sofrimento experimentado por conta de uma ilusão não afeta apenas nossa mente, mas todo nosso ser, nosso comportamento, nossa atitude, nossos músculos e glândulas. Utilizando técnicas da Hipnoterapia Re-gressiva (Terapia de Vida Passada), da Constelação Sistêmica e outras, a Terapia Transgeracional tem por objetivo identificar e reconstituir a história do sofrimento primário, ressignificando e libertando os personagens envolvidos, a fim de desfazer as ilusões, e possibilitar à pessoa cantar sua própria canção com harmonia e alegria.

Publicado no Jornal Prana em setembro de 2018.

 

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